3.6.02

Duas Vidas
Crônica de Arnaldo Jabor

"Será que a opinião pública está tão interessada assim na visão que Narcisa Tamborindeguy ou Adriane Galisteu têm da vida?"
A julgar pelo espaço que a mídia dedica a esse tipo de formador (???) de opinião, o Brasil virou um imenso Castelo de Caras.
Adriane Galisteu, após o seu casamento relâmpago, falou às páginas amarelas da Veja e deu aula magna de insensibilidade, egoísmo, sinceridade!
Estranha mistura, mas a moça tem razão quando se diz sincera. Ela não engana, revela-se de corpo (e que corpo!) inteiro, e o retrato que aparece é assustador!
Adriane teve uma infância atribulada, perdeu o pai aos 15 anos, ainda pobre, e um irmão com AIDS quando já não era tão pobre. "Eu não tinha um tostão, não tinha dinheiro para comprar um pastel. Meu irmão estava doente. Minha mãe ganhava 190 reais do INSS, meu pai já tinha morrido. Eu sustentava todo o mundo e não tinha poupança alguma."
Peço licença a Adriane, mas vou falar de outra infância triste de mulher, a de Rosa Célia Barbosa. Seu perfil - admirável - surgiu em reportagem recente da Vejinha sobre os melhores médicos do Rio.
Alagoana, pequena, 1m50cm, começou a sua odisséia aos sete anos, largada num orfanato em Botafogo. Rosa chorou durante meses. "Toda mulher de saia eu achava que era a minha mãe que vinha me buscar, depois de um tempo desisti...".
Voltemos a Adriane. Ela é rica, bem sucedida, e "nem na metade da escada ainda". A escada, boa imagem para alguém que - como uma Scarlet O'Hara de tempos neoliberais - resolveu que nunca mais vai passar fome. Até aí, tudo bem; mas é desconcertante ver como o sofrimento pode levar à total insensibilidade.
Pergunta a repórter a Adriane se ela faria algo para o bem do outro:
"Para o bem do outro? Não, só faço pelo meu bem. Essa coisa de dar sem cobrar, dar sem pedir, não existe. Depois, você acaba jogando isso na cara do outro."
"Você nunca cede então?"
"Cedo, claro que cedo. Já cedi em coisas que não afetam a minha vida. Ele gosta de dormir em lençol de linho e eu gosto de dormir em lençol de seda. Aí dá pra ceder..."
Rosa Célia fez vestibular de medicina, morava de favor num quartinho e trabalhava para manter-se. Formou-se e resolveu dedicar-se à cardiologia neonatal e infantil, quando trabalhava no Hospital da Lagoa. Sem saber inglês, meteu na cabeça que teria que estudar no National Heart Hospital, em Londres, com Jane Sommerville, a maior especialista mundial na área. Estudou inglês e conseguiu uma bolsa e uma carta da Dra.Sommerville.
Em Londres era gozada pelos colegas ingleses por causa de seu inglês jeca. Ganhou o respeito geral quando acertou um diagnóstico difícil numa escocesa, após examiná-la por oito horas seguidas. "Ela falava um inglês ainda pior do que o meu", lembra, divertida.
Adriane está rica mas não confia em ninguém, salvo na mãe. Nem nos amigos.
Vejam: "Eu não posso sair confiando nas pessoas. Não tenho motorista, nem segurança, por isso mesmo. É mais gente para te trair. Eu confio mais nos bichos do que nas pessoas. Ainda existem pessoas que acham que eu tenho amnésia. Muitas das que convivem comigo hoje já me viraram a cara quando estava por baixo. Mas você pensa que eu as trato mal? Trato com a maior naturalidade. Porque elas podem até me usar, mas eu vou usá-las também. É uma troca".
De Londres, Rosa Célia ia direto para Houston, nos Estados Unidos. Foi a escolhida para a Meca da cardiologia mundial. Futuro brilhante a aguardava. Uma gravidez inesperada atrapalhou o sonho. Pediu 24 horas para pensar e optou pelo filho, voltando ao Rio. Reassumiu seu cargo no Hospital da Lagoa e abriu consultório, mas todos os anos viaja para estudar. Passa pelo menos um mês no Children's Hospital em Boston, trabalhando 12 horas por dia.
"Você gosta de dinheiro (Adriane) ?"
"Adoro dinheiro e detesto hipocrisia. Gasto, gosto de gastar, gosto de não fazer conta, de viajar de primeira classe. Tem gente que fala: esse dinheiro que ganhei eu vou doar... O meu eu não dôo não. O meu eu dôo é para a minha conta. Eu adoro fazer o bem, mas também tenho minhas prioridades: minha casa, minha família. Primeiro vou ajudar quem está mais próximo. Mas faço minhas campanhas beneficentes."
Rosa chefia um centro sofisticadíssimo, a cardiologia pediátrica do Pró-Cardíaco. Lá são tratados casos limite, histórias tristes. O hospital é privado e caríssimo, mas ela achou um jeito de operar ali crianças sem posses. Criou uma ONG, passa o chapéu, fala com amigos, empresários. O Projeto Pró-Criança já atendeu mais de 500, e 120 foram operadas. "Sonhei a vida inteira e fiz. Não importou ser pobre, mulher, alagoana. Eu fiz.
Voltemos a Adriane e esbarraremos, brutalmente, na frustração:
"Já tive vontade de viajar e não podia. Queria ter carro e não tinha. Eu queria ter feito faculdade e não tive dinheiro. Não que eu sinta falta de livros, porque livro a gente compra na esquina, e conhecimento a gente adquire na vida. Eu sinto falta de contar para os amigos essas histórias que todo o mundo tem, do tempo da faculdade".
Duas vidas, dois perfis fora da normalidade, matéria-prima dos órgãos de imprensa. Mas qual é o mais valorizado pela mídia hoje em dia? É fácil constatar e chegar à conclusão de que há algo muito errado com a nossa sociedade. Pode ser até que o leitor tenha interesse mórbido em saber o que as louras e morenas burras ou muito espertas andem fazendo, mas a mídia não deve limitar-se a refletir e a conformar-se com a mediocridade, o vazio, o oportunismo e a falta de ética.
Os órgãos de imprensa devem ter um papel transformador na sociedade e, nesse sentido, estaríamos melhor servidos se houvesse mais Rosa Célias nos jornais, nas revistas e TVs que nos cercam.
Voltando ao Castelo de Caras, as belas Adrianes, Narcisas, Lucianas, Suzanas ou Carlas, certamente encontrarão lá um espelho mágico... Se for mesmo mágico dirá: "Rosa Célia é mais bela do que todas vocês."

Nenhum comentário: