esse eu tinha começado em maio...
Através da Janela do Ônibus
- Que horas você vai sair hoje?
Mal humorada, respondo mostrando com os dedos: "4". Levanto, tomo um banho, almoço, arrumo minha bolsa, pego a chave, abro a porta, fecho e caminho até a parada de ônibus.
Sempre o mesmo caminho, muitas vezes vejo as mesmas pessoas, com os mesmos semblantes, os mesmos movimentos. O fiteiro ao lado da parada, sempre no mesmo lugar, atrapalhando a visão de quem espera o ônibus. Procuro a sombra atrás do poste.
Recife é assim: ou calor infernal ou chuva sem aviso prévio e sem data para acabar. Mas normalmente é mais calor, e eu, feito uma palhaça, com um casaco jeans na mão, tudo culpa do ar condicionado, essa bela invenção que eu sinceramente não gosto muito.
Ali fico eu, em pé, no calor, ou na chuva, com meu casaco na mão, esperando o ônibus. "Lá vem ele", penso toda animada. Entro, passo na roleta e sento entre o meio e o fim, isso quando há lugares para sentar. E lá vamos nós.
Começa a viagem. Pessoas apressadas, pessoas sonolentas, pessoas brutas, pessoas sensíveis, pessoas faladeiras, pessoas pensativas, todas estranhas e ao mesmo tempo conhecidos de longa data. Muita gente pega o mesmo ônibus no mesmo horário todos os dias, isso cria uma rotina. Dá até a sensação de ouvir as pessoas falarem com os olhos algo como: "ontem você estava com uma cara de dor de barriga, eu vi viu!".
Sentada, busco abrir a janela, sentir o vento no meu rosto, procurando um pouco de liberdade, mesmo com gosto e cheiro de poluição.
Olho o rio, a ponte... Outra característica de Recife, rios e pontes, tão belas paisagens. Porém logo que se nota o lixo tomando conta de tudo dá uma tristeza. Essa tristeza piora quando se percebe que no meio do lixo vivem pessoas, alimentam-se e moram ali dentro, sem a menor condição humana. São tratados como animais por uma sociedade que os exclui, tacha, teme a violência vinda deles, sem notar que essa violência é apenas uma resposta ao que sofrem da mesma sociedade, uma resposta à animalização que são condenados.
Vejam aquele "boyzinho", subindo o vidro com medo de uma criança que lhe implora por um olhar, um afago, um agasalho, uma refeição, uma vida mais digna. Coisas que para nós pode não ter importância por sempre termos, para essas pessoas pode ser tudo, o céu, a vida, uma vida melhor.
Pergunto-me porque não podemos sentar na calçada, colocar uma criança dessas no colo e perguntar se ela gostaria de ouvir uma historinha. Minha mãe diz que estaria correndo risco de vida fazendo isso. Mas eu penso: se vier alguém e me matar, pelo menos eu morri tentado se mais humana, e não sendo tão hipócrita, fechando meus olhos e meu coração.
"Menina, deixa de sonhar..." "Eu?!? Jamais!! Sem sonhos eu não vivo, não luto por nada, não irei querer ser uma pessoa melhor, então de que valeria a vida?"
Vejo um cego tentado atravessar a rua. Parece que todos estão cegos. Ninguém o ajuda. Os carros buzinam avisando que irão passar. O cego tateia com sua bengala de volta para a calçada. Fico inquieta dentro do ônibus. Minha vontade é de ir até lá, trazer o cego em segurança até o outro lado. Meu ônibus dá partida antes que eu me levantasse atendendo ao pedido dele. Tenho certeza que ele pedia que alguém ali fosse menos cego, que o ajudasse, mas ele deve ter notado que os outros são mais cegos que ele.
Já está chegando minha parada. Só de pensar que amanhã verei mais coisas que me deixarão menos contente de ser parte desta sociedade cega e exclusora, me dá vontade de nem sair de casa. Por outro lado, não ficarei em casa, quero alimentar minha vontade de mudar. Mudar a visão de quem olha através da janela do ônibus, mudar a visão das pessoas que estão dentro de seus carros, de quem anda pela rua, de quem sofre pela exclusão social. Mudar o mundo. Nem que seja um pouquinho. Nem que seja por alguns segundos, dentro de você.
Suzana Ferreira
18 Julho de 2002.
18 Julho de 2002.
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