26.9.02

Carrinhos de mão

Para dar uma idéia do absurdo a que chegara a inflação na Alemanha na época da República de Weimar, antes do Hitler, usava-se muito a imagem de gente levando marcos desvalorizados em carrinhos de mão para comprar pão. A imagem era tão recorrente que permitia pensar em outras cenas possivelmente comuns nas ruas da Alemanha, na época. Engarrafamentos de carrinhos de mão nas calçadas. Donas de casa discutindo depois da colisão dos seus carrinhos de mão, com o dinheiro voando à sua volta. Homens despejando o conteúdo dos seus carrinhos de mão em grandes receptáculos para pagar o jornal ou o cigarro. Ou no decote de prostitutas, afogando-as em marcos antes de consumar o ato. E como há sempre gente que se concentra no detalhe e não vê o principal (o tipo de gente, por exemplo, que diria ?digam o que disserem dele, o Hitler domou a inflação?), não deve ter faltado quem notasse que, se os tempos eram difíceis para quase todos na República de Weimar, não eram para os fabricantes de carrinhos de mão.

A observação desses devotos do irrelevante teria outro valor se fosse revelado que os fabricantes de carrinho de mão estavam por trás da desvalorização do marco. Se o que todos pensavam que fosse a conseqüência fosse, na verdade, a causa. A atual disparada do dólar tem vários motivos, entre os razoáveis e os metafísicos, mas está sendo manejada pelos tesoureiros dos grandes bancos, que até ontem tinham uma causa pouco nobre mas compreensível para isto, o lucro a mais que teriam com a cotação alta no resgate de títulos do governo, e a partir de ontem têm que interesse em segurar seus dólares e manter a alta? Talvez se deva examinar mais de perto a responsabilidade da indústria de carrinhos de mão na desvalorização do nosso marco. O detalhe, no caso, é o principal. E o caso é de pânico criando pânico, o pânico do setor financeiro com a perspectiva do fim da farra tentando forjar um pânico com a provável eleição do Lula. O que o Banco Central pensa de tudo isso? Nada. O Banco Central, como se sabe, não se mete no processo eleitoral.

Luiz Fernando Veríssimo

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