16.1.03

Para que serve a cueca?
por Antonio Prata

Uma das lembranças mais antigas que eu tenho (devia ter uns cinco anos) é a de um Natal. Não pelo harmonioso espírito que envolvia a sala e rondava os convivas, nem pela barba descolada do papai (tio) Noel (Zé Eduardo), mas por um presente em especial. Ganhei ? me lembro nitidamente do momento em que abri a caixa ? três cuecas, da minha avó. Nada de mais, minha vó sempre me dava roupas, não fosse um dado curiosíssimo, bizarro, sobre aquelas cuecas: é que aquelas cuecas tinham etiquetas. Sim, etiquetas, iguais a essas que têm atrás das calças de moletom ou das golas das camisetas. Fiquei confuso.
Até aquele dia, na minha pequena cabeça lógico-dedutiva de cinco anos, a função óbvia das cuecas era proteger as costas do pinicar torturante que faziam as etiquetas das calças. Punha-se a cueca e pronto, já não se sentia mais etiqueta nenhuma. Uma cueca com etiqueta! Qualquer coisa no mundo podia ter etiqueta; se me aparecessem com um cavalo de etiqueta, numa boa. Seria estranho, mas aceitável. Carros, uma banheira, qualquer coisa, menos a cueca, cuja função era justamente neutralizar a etiqueta das calças. Um contra-senso terrível, um ultraje! Pra que então, raios, serviam as cuecas?
Os adultos deviam estar todos na sala de jantar, em torno da mesa, rindo, seguros. Riam muito os adultos naquela época. Eu estava sentado embaixo da escada, pensativo, ora passando o dedo na etiqueta, ora pendurando a cueca por ela. Resolvi perguntar. Astuto, decidido, fui marchando em direção a mesa, em direção a minha mãe. Entrei num vão entre a cadeira da minha mãe e de alguma tia. Chamei minha mãe, que estava acabando de ouvir uma história.
? Olha mãe, olha mãe... Eu insistia.
? O que, filho?
? Uma cueca de etiqueta!
? É, Antonio, uma cueca de etiqueta... Repetiu ela sem entender muito bem.
? Mas mãe, pode cueca ter etiqueta?
Era difícil explicar aquela dúvida tão complexa. Requeria uma abstração que minha meia década de vida não fora capaz de me prover. Era um discurso no terreno da filosofia, beirando a metafísica, sobre o sentido último das coisas.
? Mas a cueca, mãe, a cueca não é pra não pinicar a etiqueta?
Todos riram na mesa, mas eu não liguei, eu tava aliviado por ter conseguido externar a minha dúvida.
? Não, Antonio, não é não.
E mais risos de todos, risos que foram parando gradualmente diante da minha próxima pergunta:
? Mas se não é pra proteger da etiqueta, pra que que serve a cueca?
Alguns instantes de silêncio dos adultos, de um vacilante silêncio que não passa indelevelmente por uma criança. Quando me lembro da história toda, inclusive, a primeira imagem que me vem é essa, a desse silêncio observado ali do vão entre as cadeiras, quase que de baixo da mesa.
? Bom, Antonio, serve pra não prender o pinto no zíper.
Concluiu minha mãe, rasgando o silêncio, fechando o assunto como um zíper mesmo.
? Mas e quando a calça não é de zíper, pra que que serve?
O zíper ficou emperrado...
Um tio resolveu intervir:
? Ah, Antonio, a cueca é pra proteger, pra deixar tudo ali, sei lá, juntinho, pra não ficar balançando de um lado pro outro que nem pescoço de galin... ? e o meu tio foi cortado por diversas outras vozes, umas se rebelando contra a explicação ali na mesa, outras rindo da celeuma toda.
A mim as respostas não convenceram, tanto por serem ruins como por haver duas. Isso não. Proteger o pinto? Mas quem é que tava querendo atacá-lo? Deixar tudo juntinho, mas pra que? O legal era que aquilo balançava, ué?! Cada coisa tinha a sua explicação e eles não haviam conseguido me dar a da cueca. Voltei pra debaixo da escada, pensativo. Alguma coisa havia mudado radicalmente na minha concepção de mundo naquele momento. Algo se partira para sempre.
Aqueles adultos não tinham respostas para tudo. Pior ainda, se não conseguiam explicar as próprias cuecas, como confiar no resto? Então as cuecas não eram para proteger das etiquetas... Huumm...Tudo estava de pernas pro ar, toda a minha cosmologia havia sido perturbada. O mundo chacoalhava de um lado pro outro.
Uma convicção, no entanto, ainda restava. Fui até a escrivaninha da minha avó. Se os adultos achavam que tava tudo certo cueca com etiqueta, ok, problema deles, mas eu não. Peguei a tesoura e, cuidadosamente, cortei uma a uma as etiquetas das três cuecas. Saí andando,orgulhoso. As etiquetas, pelo menos, não me incomodariam.
Depois daquele natal o mundo não me pareceu mais um lugar tão seguro, passei a olhar tudo com um olhar meio desconfiado, meio desencantado. Desse dia em diante, em todo lugar que eu fosse, independente da roupa ou da cueca, alguma coisa sempre me pinicaria. Uma leve coceirinha surgiria de vez em quando. Era a dúvida. A dúvida que nasceu em mim naquele natal, a dúvida diante do mundo, esse lugar curioso, por onde passamos alguns natais e logo partimos, tão incertos como chegamos, sem levar nada, nem ao menos a resposta a mais íntima das perguntas: afinal, pra que servem as cuecas?

[Velotrol]

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