2.11.03

Eu não preciso saber

Ele era uma pessoa normal. No segundo grau todas as menininhas da escola queriam sair com ele, mas ele não dava atenção a elas, só ficava com uma desconhecida, e apenas uma por noite. Não queria compromissos. Os professores sempre diziam que era um bom rapaz, mas deveria gostar menos da farra.
Os finais de semana começavam nas quintas e não ficava em casa nenhuma noite até a segunda-feira. Sempre em festas, boates, cinemas, luais, nunca em casa. Mesmo com essa vida na balada, tirava notas regulares e nunca repetiu de ano, coisa que irritava qualquer CDF.
Tinha facilidade de fazer amizades, era simpático, conversador, e muito educado. Era o maior sucesso com a mulherada, mas nunca havia namorado. Coisa que deixava seus amigos intrigados.
Passou no vestibular, mais farras. Logo fez um grupo de amigos para sair nos finais de semana, e continuava "com o mesmo jeitão de sempre", como diziam os velhos amigos. Bebia pouco se comparado aos amigos e não fumava.
Com sua vida de baladas nunca havia sentido falta de nada, mas ultimamente vinha sentindo um vazio dentro de si. Era estranho para ele: dia de sexta-feira, véspera de feriadão, e ele sentindo que estava faltando algo em sua vida, que era melhor ficar em casa e não sair na "night". Ficar sozinho com seus pensamentos, tentar analisar o que lhe faltava, porque sentia aquilo...
- Ei viado, acorda!! Bóra embora!! - um amigo gritou para ele, que estava olhando fixamente para a banca da frente.
- Eita pau, Mer'mão, dei uma voada danada agora... Bóra logo! - disse isso, mas não queria ir para canto nenhum...
Chegando no estacionamento da universidade, lembro-se que havia esquecido de devolver um livro, talvez a sua melhor desculpa:
- Porra, lembrei de uma merda agora.... Tem um livro que tenho que devolver hoje, se não eu pago uma multa... eu num to afim de pagar porra nenhuma pra essa universidade... Faz o seguinte, cês vão no carro de Antônio, eu vou pegar o livro e devolver. Pego o carro e vou pro churra, tá massa?
- Ei Antônio, cabe nóis aê? - disse um de seus amigos indo em direção ao tal carro.
Ele pegou o livro com pressa, começou a andar rápido em direção a biblioteca, como quem tem pressa de verdade. Quando viu o carro sumir, diminuiu o passo. Entrou na biblioteca e rezou para que a fila estivesse enorme, e estava. Era a primeira vez que não se incomodava com a demora da bibliotecária, passou quarenta minutos esperando pacientemente para ser atendido. Tarefa cumprida. Destino: carro. Mas ele não queria ir para o churrasco. Nem queria ir para casa, certamente estaria cheia de priminhos, amiguinhos do irmão, e sem falar que os amigos podiam ligar para saber se ele tinha ido para lá, já que seu celular estava desligado. Não! Não queria mesmo ir para casa... resolveu andar pelo campus. Andou até ver o "laguinho", normalmente estava cheio, mas por ser sexta-feira, estava praticamente vazio, não fosse pela presença de uma pessoa, cujo o sexo não dava para destinguir.
Sentou-se num banquinho da pracinha e começou a pensar no que estaria acontecendo no churrasco: "os caras devem estar bebendo, cascateando as mulheres, falando idiotices entre eles, tirando onda uns com as caras dos outros... tomara que nem lembrem que eu exis..." Nesse instante parou de pensar e se dispôs a olhar para aquele indivíduo deitado ali na grama, e pois a analisar: "cabelos curtos, meio assanhados pelo vento eu acho, nariz afilado, boca bem delineada... É UMA MENINA!! Tenho certeza agora. Roupa leve e folgada, parece ser tímida. Deve estar muito cansada, tá até dormindo..." Passou meia hora olhando para aquela criatura tão estranha ali deitada, sem se mover, só de olhos fechados. "O que é aquilo? Ela tá chorando? Será que devo falar com ela? Vou lá..."
Levantou-se e chegou perto da garota, ela percebeu sua presença e abriu os olhos e continuou imóvel.
- É... eu sei que não te conheço, que não tenho nada a ver com você nem com seus problemas, mas você quer conversar com alguém?
Ela continuou quieta, piscou normalmente os olhos e continuou olhando para ele, imóvel.

- Quer que eu vá embora, né? Tá certo, desculpa aê!
Ela estendeu a mão e alcançou a perna da calca dele. Então ele parou e olhou para ela. Ela sentou-se, mas não enxugou as lágrimas, e fez um sinal para que ele sentasse também. Ele quis sentar de frente para ela, mas ela apontou ao lado, de frente para o lago, ele obedeceu. Olhou para ela e recomeçou:
- É problema com o namorado, não é?
Ela esbouçou um sorriso nos lábios e negou com a cabeça.
- Com os pais?...
Negou novamente da mesma forma.
- Com a escola? Tirou alguma nota baixa?
Dessa vez ela sorriu. Mas negou com a cabeça da mesma forma.
- Dinheiro?... Trabalho?... Amigas?... Amigos?...
Tudo ela negava.
- Ah, então já sei! Está apaixonada e o menino não quer nada com você?!
Ela não negou de imediato, abriu a boca bem devagar, parecia que ia falar, mas só respirou e negou novamente.
- Eu não entendo! Eu pergunto se quer conversar, você dá a entender que não. Vou embora e você me "chama" sem falar. Me pede para sentar e não fala. Não responde verbalmente a nenhuma de minhas perguntas... Meu Deus! Você é muda!? Então é por isso que não responde!!!
Ela riu, e negou novamente. Olhou para ele, olhou para o lago. Um pássaro pousou em uma pedra bem próxima aos dois:
- Olhe aquele pássaro, não é lindo?
- Não sei que encanto tem demais, é igual aos demais pardals - ele fala como se não estivesse surpreso por ouvir a voz dela. "Ela falou!!!" Na verdade ele sorriu por dentro, e disse isso só para provocá-la mais a falar.
- Ele é igual aparentemente, mas ele é diferente. Olhe bem. Ele não é igual àquele outro. Eles têm visões diferentes do mundo...
- Cada um tem a sua vivência, é isso que você quer dizer?
Ela olha para ele...
- Não tente resumir as coisas, não diminua a vida.
Ele olha para o pássaro como quem pede desculpas. Ela olha para o lago:
- O vento vem, toca suavemente o lago, ele o sente e se arrepia, formando ondas tão gentis quanto o toque. Um pequeno peixe vem à superfície se alimentar de pequenos organismos flutuantes, o pássaro vê, e mergulha, é rápido e certeiro, sai com seu alimento e voa para um galho ou plaina no ar, aproveitando o vento tão gentil. Uma folha cai da árvore e toca suavemente a água, fazendo ondas suaves...
Ela pára de falar, olha para o rapaz. Ele está olhando tudo que ela descreveu, como quem quer confirmar tudo aquilo que ouviu. Estava tão concentrado nisso que só percebeu que ela tinha parado de falar quando ela tocou seu ombro como quem manda deitar na grama. Ele só obedeceu. Ela recomeça:
- A luz do sol brinca entre as folhas, fazendo malabarismos entre elas, escorregando aos poucos entre as frestas até chegar na grama, no tronco, num galho, no banco da praça, nos seres vivos que necessitam de alguma luz... - silencia - ...As nuvens também brincam com a luz, junto com o vento, que também brinca com as folhas, com o lago, com os pássaros...
- É, acho que isso é a natureza - ele fala depois de um longo tempo de silencio entre os dois. - Meu nome é...
Quando ela percebe que ele vai falar o nome, se vira rapidamente e o interrompe pondo a mão contra seus lábios, como quem diz "por favor, não fale":
- Eu não preciso saber seu nome agora, nem você o meu... - e dito, volta para suas observação em silêncio.
- Você não quer me dizer mesmo porquê estava chorando, né?
- Eu não estava chorando, estava lamentando.
- Lamentando o que?
- As pessoas não terem a sensibilidade de perceber as pequenas coisas, como essas que tentei descrever. - Silêncio entre os dois novamente - Talvez se soubessem ver, evitassem tanto desgaste entre si. Mas estão ocupadas demais com suas vidas, seus problemas, que não vêem que esse pode ser um caminho para a solução de vários problemas, não exergam nada ao seu redor.
Ficaram até o sol se pôr, brincando de descrever o que viam, com o máximo de palavras que podiam.
- Acho que já está na hora de ir, o sol já foi e a lua já está chegando. O observatório é outro.
- Para onde você vai? - ele perguntou.
- Para a praia, qualquer uma que tenha silêncio.
- Então não vai achar esse lugar em Recife.
- Realmente não vou ficar aqui em Recife, tem uma praia semiderserta no caminho para João Pessoa, é para lá que eu tô indo... - ela deu um sorriso quando notou a cara de espanto dele.
- Você dirige? Tem carro? Ou vai de ônibus ou com alguém?
- Que idade imagina que tenho? - ela diz isso depois de uma gargalhada.
- Olhando de longe achei que tinha no máximo 15, depois da conversa, não dou mais de 19.
- Tenho 22, quer a identidade para checar?
Ele sentiu uma vontade imensa de aceitar essa oferta, assim poderia saber qual era o nome daquela figura tão diferente.
- Não precisa, confio na sua palavra.
- Pensei que quisesse, para aproveitar e ver meu nome lá.
- É, você pensou certo. Mas se você não quer me dizer tudo bem, não tem bronca, eu respeito sua decisão.
Ela sorriu. Pegou a chave do carro no bolso da calca e levantou-se. Ele fez o mesmo e perguntou se ela queria que ele a acompanhasse até o carro.
- Eu deixei meu carro no CCSA, se você quiser ir, tudo bem...
- Eu também estacionei lá... Vamos, então?
Começaram a andar, ele estava notavelmente nervoso, e não sabia o por quê... de certa forma de sentia íntimo dela ela, não tinha por que se sentir tão nervoso... mas não se continha, brincava com as chaves passando de uma mão para a outra, entre os dedos, um sinal de ansiedade.
- Que curso você faz aqui?
- Administração.
- Eu também! Que período?
- Algumas cadeiras do quinto e outras do sexto. Você é do quinto né?
- Como você sabe? Você já me conhecia? Eu não lembro de você nas aulas, não... Ah, então é por isso que não quer saber meu nome, já sabe...
- Eu sou muito discreta, gosto de observar e não de ser observada. Eu já tinha te visto. Você sempre está com seus amigos, gosta de farra, de chamar atenção e tem mania de seduzir várias e escolher só uma...
- Poxa, to vendo que você me conhece mais do que eu mesmo. Só não disse meu nome...
- Bem, se teu nome for Viado, ou Corno, lhe juro que a primeira vez que conheço uma pessoa com esse nome. Teus amigos só te chamam assim... Qual dos dois é o teu nome?
- Nenhum dos dois, engraçadinha, eu sou o Cristiano.
- E eu sou...
Ele a interrompeu pegando em seu braço suavemente e pondo-se de frente para ela, e disse "não preciso saber seu nome agora".
Ela riu... A essa altura, já chegaram na frente do carro dela...
- Então, até a próxima, Cristiano...
Ele correu até a porta do carro dela antes mesmo que ela abrisse.
- Posso te seguir para observar a noite com você?
- Você não perde uma, né? Eu sei que não sou seu tipo, por quê está querendo me catar?
- Quem te disse isso? Não quero te "catar", quero apenas conversar com alguém que realmente me escuta, e tentar aprender a observar as pequenas coisas da vida. Posso? - disse juntando as duas mãos como quem implora...
- Tá certo... vamos lá! Mas vou logo avisando, nada de tentar gracinhas! É melhor você deixar seu carro em casa, e vir no meu... Gastamos menos gasolina...
- Mas eu moro no Espinheiro, é muito contramão.
- Hummm, então a gente vai lá em casa, e você deixa seu carro lá...
- Tá bom!!
E foram. No carro, a caminho para a praia quase não conversaram, se ligaram mais em ouvir música... cantando baixinho, timidamente, até se soltarem totalmente e cantarem sem vergonhas... Chegando a uma praia bastante calma, desceram do carro e tiraram os sapatos. Começaram a andar na areia.
- Você parece ser muito zem...
- Em alguns momentos...
- Bastante paciente
- É difícil perder a calma...
- Bem carinhosa...
- Quando se merece...
- Você acha que eu sou um galinha?
- Eu não tenho que achar nada sobre a sua vida e o que você faz.
- Mas você acha... não sei, mas não sinto vontade de namorar, ter compromisso.
- E você acha que agüentaria a mesma mulher por mais de uma semana? Você se contentaria com apenas uma?
- Não sei... as que conheci até hoje, não. Mas as de a patir de hoje eu não sei... talvez. Nunca fui de ficar com mais de uma por noite...
- Por noite... - ela deu uma risada.
- Acredito que já seja uma evolução, muitos ficam com três, quatro... às vezes ao mesmo tempo... Sem falar que eu não suporto traição... quando meus amigos vem se gabando dizendo que colocaram chifres nas namoradas, eu me sinto enojado... não gosto da idéia, pergunto por que fazem isso... - ele falou isso com tanta seriedade que ela ficou sem graça de ter rido.
Ela continua andando, só ouvindo, ele segura em seu ombro e dá o sinal para sentarem ali. Começaram a analisar a natureza da noite, do mar, do vento... o vento começa a esfriar e os dois estão sem casacos. Ela corre para o carro e pega um cobertor e diz: "uma mulher prevenida vale por duas".
- Por que você não senta aqui? Assim cobrimos nós dois e conversamos vendo a mesma coisa - sugeriu Cristiano.
Ela aceitou a sugestão, afinal ele não era tão mal quanto ela pensava. Sentou-se na frente dele, entre as pernas, ele esticou as pernas, ela encolheu as dela. Se cobriram e ela se encostou nele com certo receio. Ele se reencostou na grande pedra que estava por trás dele e a abraçou. E os dois ficaram assim, mudos e imóveis por um longo tempo, depois começaram a falar coisas sobre a natureza, o mar, o oceano, os seres humanos... até o sol nascer.
- Cristiano? - depois de horas sem uma palavra.
- Oi? O que foi?
- Você ouviu isso?
- Isso o que?
- Minha barriga roncando!
E os dois começaram a rir...
- Onde vamos tomar café da manhã?
- Lá no carro eu tenho algumas bolachas e água, tá servido?
- Bem, eu prefiro um pãozinho de mel, um copo de suco e uns bolinhos... mas como não tem, vamos nessa...
Após muitas brincadeiras com aquele simples desjejum entraram no carro, sol já estava ficando forte.
- Agora para onde queres ir?
- Bem, o carro é seu, você quem conhece a região, você escolhe o nosso destino. - disse isso, deixando uma pontinha de sedução no ar.
- Eu quero ir para João Pessoa, tenho amigas lá. Tomamos um banho, comemos algo mais decente e voltamos para Recife.
- Eu não conheço João Pessoa, antes de voltarmos, podes me apresentar a cidade?
- Com todo prazer!
- Já que você falou em prazer, prazer em te conhecer...?
- Beatriz! Nossa, pensei que nunca fosse querer saber...
- Agora já posso beijar a noiva?
- Hein?
- Casa comigo?
- Você é louco? Eu mal te conheço...
- Me conhece mais do que eu mesmo... - olhou nos olhos dela e disse: - tá certo, vamos bem devagar e começar pelas pequenas coisas: quer... rãn rãn... ser minha primeira e última namorada?
Os dois riram, ela não deu uma resposta. Entraram no carro, e foram para João Pessoa.
Ele sentiu uma profunda ansiedade em saber qual seria a sua resposta, mas não perguntou novamente... Chegando na casa da amiga dela, desceram do carro, tocaram a campainha:
- Biaaaaaaaaaa, quanto tempo maluca!! Tudo bem contigo? O que deu em tu para aparecer essa hora da manhã aqui?
- Cristiano, essa é minha amiga Débora. Débora, esse é meu namorado, Cristiano.


Suzana Ferreira, 2 de maio de 2001.

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