11.2.02

Tempo de escolha
Cristóvam Buarque

Do ano 2002, os futuros historiadores do Brasil vão certamente dizer que tivemos uma eleição carente de idéias, e com sobra de marketing. A revista "República" deste mês traz na capa a foto de três dos mais importantes marqueteiros políticos do Brasil, com uma manchete onde se lê: "Um deles vai levar a presidência". É como se os candidatos não importassem, apenas os seus vendedores.
Depois de 16 anos de democracia, a quarta eleição presidencial parece tão desprovida de idéias quanto era o tempo da ditadura. Fica a impressão de um processo político que substitui a força dos militares para imporem sua vontade aos eleitores indiretos, pela criatividade dos publicitários para convencerem os eleitores diretos. O vídeo no lugar da baionetas. Mas o processo continua como uma coreografia onde o cenário importa mais do que a música, e a dança e os truques publicitários, mais do que a força moral dos líderes.
Pobre democracia onde os candidatos dependem mais da forma como são produzidos e apresentados pelos assessores de comunicação, do que pelo conteúdo que eles próprios pensam e dizem. Onde o corte da roupa e os slogans criados importam mais do que os sonhos para o futuro do país e mais do que os meios de como construí-lo.
Não há dúvidas do avanço na liberdade de palavra, nem há dúvidas que o Brasil avançou na luta contra a corrupção, mas regrediu no que se refere à deformação do processo eleitoral. Hoje, pode-se dizer tudo, mas parece não haver o que dizer. É como se, na medida em que fosse atendido o direito de falar, fosse havendo um emudecimento nas coisas para dizer.
Uma eleição, especialmente em um momento de impasses e mudanças, é o momento do debate sobre o futuro, da apresentação de propostas e a definição das medidas que serão implantadas pelo próximo governo. Mas não se vê esse debate, essa apresentação e ainda menos essas definições.
Em menos de 200 dias, mais de 100 milhões de brasileiros vão votar para escolher o novo presidente por quatro ou oito anos. O próximo presidente será o condutor de escolhas decisivas para o futuro das próximas décadas, entre: implantar explicitamente a apartação social ou abolir o quadro de pobreza; entre depredar irreversivelmente o meio ambiente ou iniciar um desenvolvimento sustentável; entre defender a soberania ou deixar o país diluir-se no resto do mundo; entre distribuir ou concentrar a renda; entre manter a responsabilidade fiscal ou voltar à leviandade com o uso do dinheiro público; entre usar esse dinheiro primeiro para atender às necessidades do povo ou para garantir os privilégios dos ricos; entre continuar o rumo da modernidade-técnica ou orientar-se para uma modernidade-ética. Nós não vamos apenas votar, vamos escolher.
Este é um ano de escolha de propostas, de idéias, de rumos, de líder para nos conduzir democraticamente, mas a eleição presidencial vem sendo tratada como um campeonato de marketing. Não há neste momento um único livro bem divulgado de autoria de qualquer dos candidatos presidenciais sobre qual o seu sonho e as ferramentas que usará na condução do Brasil, mas há livros consagrados escritos por seus marqueteiros sobre como conduzir a campanha, com base nas pesquisas de opinião pública e como ajustar-se a elas para ganhar a eleição. Essa visão é uma deformação do conceito de democracia. Eleição não é campeonato.
Se a democracia consiste em escolher a mais competente empresa de pesquisa de opinião pública e uni-la ao melhor marqueteiro na praça para desenharem o candidato e sua fala, não seria necessário gastar tanto esforço para fazer uma eleição. Melhor seria um concurso para escolher um administrador competente e dar-lhe a lista de compras que os eleitores apresentam nas pesquisas.
A democracia é para eleger líderes, não apenas gerentes; líderes que conduzam, não apenas gerenciem; que cuidem do Brasil e não apenas administrem a máquina do Estado. Para isso, o presidente não pode ser um robô construído conforme o imaginário coletivo identificado pelas pesquisas de opinião, ele tem que ser o líder que constrói o imaginário da população com suas idéias e propostas.
Não há democracia sem marketing. Pode-se mesmo dizer que democracia é marketing desde quando os gregos inventaram este método de dirigir sociedades; é certo que nos tempos de hoje marketing não é fruto apenas da oratória e da retórica dos candidatos, como antigamente; há técnicas novas no mundo. Mas a democracia se descaracteriza se o marketing deixa de ser o detalhe da apresentação da idéia de um líder e seu partido, e se transforma no substantivo da mensagem do "candidato-robô".
Há 50 anos já existia marketing. Juscelino não teria tanto êxito sem a frase "cinqüenta anos em cinco", mas, por trás desta frase elaborada por algum marqueteiro anônimo, havia a nítida idéia de um sonho formulado por um líder para o desenvolvimento do país. Naquele tempo, o líder puxava os assessores cúmplices ideológicos. Hoje, são profissionais renomados - orgulhosos da falta de compromissos ideológicos, atuando em um lado diferente a cada eleição - que dizem as falas a serem usadas pelos candidatos proibidos de falar o que sonham, quando disso são capazes.
A capa da "República" deste mês é um clássico que servirá como símbolo para os historiadores, mas pode ser também um instrumento para despertar os candidatos: que acordem e gritem independência em relação à tutela do marketing. Formulem suas idéias e venham nos convencer, usando a ajuda de marqueteiros, mas sem pedir emprestado os sonhos que eles não sonham, porque não é esta a função deles, e porque eles entendem de pesquisas de opinião, não de sonhos. E se sonharem, que sejam eles os candidatos.

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