24.9.02

Náufragos 2

Tem a história do náufrago resgatado de uma ilha deserta que não consegue dizer quanto tempo passou na ilha. Perdeu a noção do tempo. Pelo seu aspecto ao ser encontrado - a barba quase no umbigo, as roupas reduzidas a fiapos, a pele curtida pelo sol e o sal - foram muitos anos, mas quantos?
Ele não se lembra do naufrágio. Não se lembra do nome do navio, do tipo do navio, do que fazia a bordo...
- De onde você é?
- De, de... Que língua eu estou falando?
- Inglês. Mas com sotaque.
- Sotaque de onde?
- É difícil dizer. Talvez você tenha adquirido o sotaque na ilha.
- Improvável. Eu só falava com os pássaros e com as árvores. Os pássaros, pelo menos, respondiam. Mas em nenhuma língua reconhecível.
- E mesmo assim você conservou o inglês.
- É estranho. Não me ocorre nenhuma outra língua além do inglês, embora eu sinta que não é a minha língua materna. Talvez seja por causa de Pamela...
- Pamela?
- Uma mulher que eu fiz, de areia.
- Você fez uma mulher de areia?
- Eu precisavade companhia humana. No princípio, só precisava de sexo. Fiz um buraco na areia. Mas, com o tempo, senti que precisava mais do que apenas um buraco. Construi um corpo de mulher em torno do buraco. Um corpo rudimentar. Seios, grandes seios, quadris, uma cintura delgada, coxas longas. Sempre gostei de coxas longas. Mas logo senti que ainda faltava algo. E fiz uma cabeça para a minha mulher de areia. Um rosto, com feições, nariz, boca. Um rosto bonito, cuidadosamente esculpido, e que eu retocava constantemente, consertando os estragos feitos pelos caranguejos e o vento, e realçando a sua sensualidade. O rosto de uma mulher satisfeita. O rosto de uma mulher que me amava, que mal podia esperar pelas nossas noites de paixão. Foi um erro.
- Por que um erro?
- Porque o corpo desmentia o rosto. O corpo era estático e sem vida. Não se mexia, não acompanhava o meu ardor, permanecia ausente e frio. O corpo negava o brilho faiscante das conchas azuis que eram os olhos de Pamela, quando me via.
- Por que "Pamela"?
- Porque decidi que, fria daquela jeito, só podia ser inglesa. Eu tinha feito uma inglesa! Deve ser por isso que conservei o meu inglês. Era a língua com a qual eu fazia declarações de amor a Pamela e tentava despertar no seu corpo a calidez que o rosto prometia. Ela não reagia. Ela não me respondia. Com os pássaros, pelo menos, havia diálogo. As árvores pelo menos me escutavam. Pamela ficava muda e distante. Também não respondeu quando eu comecei a gritar com ela, e a xingá-la, e acusá-la.
- Acusá-la de que?
- De me trair. Pamela estava me enganando.
- A mulher de areia estava enganando você?
- Estava!
- Com quem?
- Não tenho a menor idéia. Com os caranguejos, com o vento, com as minhas alucinações. Sei lá. Eu só não tinha dúvida de que, com eles, ela se mexia. Uma loucura, eu sei. Mas eu tinha pedido aquilo. Eu tinha criado o meu próprio tormento, criando um outro para compartilhar da minha solidão. Não se tem companhia humana impunemente. Onde há um outro, há confusão, há conflito, há desgosto. E há traição.
- O que você fez?
- Um dia, destrui a Pamela a ponta-pés. Só deixei o buraco no chão. Mas no dia seguinte a reconstruí, os grandes seios, as longas coxas. Pedindo perdão, dizendo que o ciúme, e o seu silêncio e a sua inércia, tinham me deixado louco, e jurando que aquilo nunca mais aconteceria. Caprichei no seu novo rosto. No cabelo de algas verdes, na expressão de compreensão com o desatino dos homens apaixonados, e de perdão. E no outro dia a destruí a ponta-pés outra vez.
- Grego.
- Hein?
- O seu sotaque. Pode ser grego.
- Hmmm. Grego. É possível. Me sinto muito antigo.
- Qual é a última lembrança que você tem do mundo, antes de naufragar?
- Deixa ver... Rita Pavone. Não tinha uma Rita Pavone?
Decidiram não contar nada ao náufrago sobre o 11/9, até ele estar completamente recuperado.

Verissimo

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