24.2.03

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra
vista quer não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se
acostuma a não olhar para fora. E porque não olha fora, logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a
luz. E, a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece
a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na
hora . A tomar o café correndo porque está atrasado, a ler o jornal no
ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque
já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e
dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir e a ler sobre a guerra. E aceitando a
guerra aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E, aceitando os números, não acredita nas negociações de paz. E, não
aceitando as negociações de paz aceita ler todo o dia-a-dia da guerra,
dos números de longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro a ouvir no telefone: hoje
não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de voltas
. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar pôr tudo o que se deseja e o de que
necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar
menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que
as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro. Para Ter com que
pagar nas filas em que se cobra.
AS gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir revistas e
ver anúncio. A ligar a televisão e assistir a comerciais, a ir ao
cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado, na infindável catarata de produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e
cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. À contaminação
da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir
passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas,
tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento
ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco
o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua
no resto do corpo..

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim da semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir e
ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a
pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca
e baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que,
pasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti

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