24.2.03

Sui também é cultura

Muitos de vocês podem não se interessar por essa notícia/artigo abaixo, mas eu acho de suma importância (também, se não achasse, né?)...

Iugoslávia: o silencioso fim de uma nação
Vizentini

Há duas semanas a República Federal da Iugoslávia deixou oficialmente de existir, quando o parlamento daquele país aprovou uma reforma constitucional que estabelecia a sua dissolução e a instituição do Estado da Sérvia e Montenegro. O projeto da reforma fora encaminhado em 2002, devido à forte pressão da União Européia (UE), como condição para que o país ingressasse no Conselho da Europa pudesse negociar o Acordo de Estabilização e Associação com a UE. Mas, afinal, qual o significado deste acontecimento para as relações internacionais?

A Iugoslávia ("país dos eslavos do sul") surgiu ao final da Primeira Guerra Mundial, numa iniciativa apoiada pelos vencedores anglo-franceses, com o objetivo de evitar a reconstituição do Império Austro-Húngaro (aliado da Alemanha) que acabara de se desintegrar. Tratava-se de uma monarquia liderada pelos sérvios que, até 1929, denominava-se Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos e, até 1941, Reino da Iugoslávia. Muitos analistas insistem na artificialidade deste Estado, que seria apenas um arranjo diplomático anti-germânico e uma reunião forçada de minorias étnicas rivais.

Trata-se, em grande medida, de um mito. Na verdade, a base da Iugoslávia era o nacionalismo dos chamados "pequenos eslavos" ou "eslavos do sul", que lutou contra a opressão austríaca (germânica) e turca por séculos, além do pan-eslavismo propagado pelo império russo antes da guerra. Por outro lado, os grupos mais numerosos, como sérvios, montenegrinos, croatas, eslovenos e bósnios pertencem à mesma etnia e grupo lingüístico. A diferença principal está na religião, sendo os dois primeiros cristãos greco-ortodoxos, o terceiro e quarto católicos e o último muçulmano (por adesão ao ocupante turco).

Em 1941 Hitler e Mussolini ocuparam e desmembraram a Iugoslávia, anexando parte do seu território e criando uma Croácia fascista. Católicos e muçulmanos foram empregados contra sérvios, judeus e ciganos, fomentando-se matanças e um ódio interétnico. Mas os guerrilheiros comunistas de Tito, um croata, desenvolveram a mais bem sucedida luta anti-fascista e forjaram uma rearticulação dos diversos povos contra os invasores. Assim, após a Segunda Guerra Mundial nasceu a segunda Iugoslávia (República Socialista Federal da Iugoslávia), republicana laica, socialista auto-gestionária, anti-fascista e com uma estrutura federal, sem a supremacia de um povo sobre os demais.

As feridas da guerra foram cicatrizadas e o país, orgulhoso de sua independência e neutralidade frente aos blocos da Guerra Fria, foi um dos fundadores do Movimento dos Países Não Alinhados em 1961. Desenvolveu uma diplomacia ativa e mundialmente respeitada, voltada para o Terceiro Mundo. Mas a crise do socialismo, o fim da Guerra Fria e a globalização jogaram o país numa crise sem volta. Com o retorno dos micro-nacionalismos e separatismos que caracterizaram este processo, fragilizados internamente e sofrendo ingerências de países europeus como Alemanha e Itália, as repúblicas mais ricas buscaram a independência e a constituição de Estados étnicos.

Isto ameaçou os sérvios, que se encontravam espalhados por várias das repúblicas, e teve início uma sangrenta guerra civil em 1992, que durou até 1995, sendo definida por uma ação da OTAN em favor dos croatas e bósnios. Em 1992, por plebiscito, foi estabelecida uma terceira Iugoslávia (República Federal da Iugoslávia), congregando apenas as repúblicas do Montenegro e Sérvia (em cuja região do Kosovo vivia a minoria albanesa). Nova intervenção da OTAN em 1999 produziu a derrota do regime de Milosevic e a submissão da Iugoslávia, devido à difícil situação econômica do país.

Assim, o fenômeno de fragmentação territorial que acompanha os países periféricos perdedores da globalização tem seu modelo mais elaborado na Iugoslávia. Dentro de três anos haverá um plebiscito que decidirá se as duas repúblicas permanecerão ligadas ou não. Provavelmente haverá a separação das mesmas e a reconstituição de mais nações evocando a época feudal, países de opereta sem vontade própria. Mais que um nome, desaparece um conceito federativo, supraétnico, laico e moderno, dando lugar a micronacionalismos conservadores. Com isto, a UE assegura a submissão de uma região que resistiu à lógica da desterritorialização, mas ao mesmo tempo lança a sementes de futuros conflitos.

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